O BEIJO UNDERGROUND
Apesar de a repressão ter estimulado a criação de um universo que, por sua natureza anti-realista, favorecia a fantasia erótica, a trajetória do beijo no cinema underground (anos 50 a 70) foi diferente, mais explícita e menos reprimida. As tramas exaltavam o desejo, livre dos padrões sociais e das tradições cinematográficas hegemônicas. No Brasil, mesmo com a navalha da Ditadura, beijos erotizados rolavam soltos nas pornochanchadas e também no cinema marginal que, durante os anos 60 e 70, produziu dezenas de filmes na chamada Boca do Lixo.
No underground, o beijo passou a identificar a realização do desejo através do prazer em si mesmo. Cineastas como Cocteau, Jean Genet, Markopoulos, Kenneth Anger, Jack Smith e Paul Morrissey projetaram imagens sensoriais de beijos, coitos e excitações sob a perspectiva do êxtase e da liberdade sexual, cuja estilística influenciaria toda uma geração, de Pasolini à Derek Jarman, de John Waters à Almodóvar, de Gregg Araki à Bruce LaBruce. Quem levou aos limites a transgressão estética do desejo foi Andy Warhol. Mergulhado na contracultura dos anos 60, o artista capturou sua época: da mass media ao underground, do cultmovie ao trash, do glamour hollywoodiano à pornografia, da televisão à intelectualidade, das fofocas às vanguardas. Warhol registrava e erotizava tudo ao seu redor: entre 1963 e 1972, registrou em 16mm centenas de metros de filmes insólitos, subversivos e experimentais que capturavam a performance do corpo no cotidiano, que teatralizavam a vida de modo camp. Seus filmes tinham roteiros simplórios, abordavam a intimidade das pessoas: o ato de acordar, conversar, brigar, excitar-se, transar. Em um deles, Kiss (1968), Warhol registrou 55 minutos com diversos casais se beijando durante 3 minutos e meio cada um deles, criando uma iconoclastia do beijo, além de uma paródia ao beijo hollywoodiano durante a censura.
No cinema marginal, cineastas como Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Ozualdo Candeias, entre outros, teceram fantasias eróticas em filmes politicamente outsiders, trágicos. Sem muito glamour, este cinema deflagrava a realidade política de modo anti-romântico. A musa do cinema marginal, Helena Ignez, declarou que praticamente não havia beijo apaixonado. Em sua personagem Angela Carne Osso, em A Mulher de Todos (1969), de Sganzerla, havia forte atração sexual, mas sempre sem beijos. “Dentadas e queimaduras de charutos, ponta pé, traição, forte sexualidade. O carinho do beijo não existia nos personagens”. Em Bressane, particularmente Cara a Cara (1967), “a sexualidade era angustiada e mortal, também sem beijos. A morte do amor, isto é, do meu personagem”. E mesmo a femme fatale Janete Jane, de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Sganzerla, é morta, e sem beijos.